No dia seguinte, na escola, a aventura foi contada da seguinte forma para os amigos:
- Ontem tomei vacina! - declarou João, todo prosa.
Bocas escancaradas de pavor ao lembrar os escândalos que faziam para tirar a atenção dos pais da vacina e, quem sabe, fazer com que esquecessem que foram ali só para ver os filhos serem espetados? ("Que vexame!", "Vamos deixar para outro dia, quando estiver mais calmo!")
Mariana, um pouco mais corajosa do que o restante da turma, resolveu arriscar uma pergunta:
- Doeu?
- Não, sua boba - só dói quando a gente chora.
Olhares incrédulos: como é que podia, só doer se chorasse?
- Olha João, acho que você tá mentindo - resmungou Pedro, que detestava ter que ir na pediatra porque a mãe sempre dava uns cascudos na entrada - afinal, ela tentava entrar e ele tentava sair, medindo as forças, quem vocês acham que ganhava no cabo de guerra? O cascudo, né?
- Não tô não! Quando a minha mãe chegar, pergunta pra ela!
E a discussão foi indo, foi indo, até que a tia Ana resolveu investigar o que podia estar fazendo o papo daquele grupinho estar tão animado.
- Eh, calma aí gente. Que discussão é essa?
- O João tá mentindo, Tia! - gritaram os colegas em coro.
A tia olhou o menino, que já estava ficando vermelho de raiva, porque se tinha coisa que ele não gostava era de ser chamado de mentiroso.
- Não tô não! - berrou ele de volta, quase em lágrimas.
- Será que alguém pode me explicar o que é que vocês acham que é mentira?
- O João tá dizendo que tomou vacina ontem e não chorou! - reclamou Mariana.
- E que já teve que colocar uma mosquinha no braço e tirar sangue e também não chorou!
- E que não reclama quando tem que ir na médica!
- E que...
- Tá bom, já entendi - falou a tia, tentando acalmar os ânimos. - E aí, João, o que você tem pra me dizer?
- Que eles são bobos de chorarem, que é por isso que dói mais. Se ficar calmo, não dói nada e é mais rápido.
A tia arregalou os olhos. A cada dia aquela turminha lhe dava mais motivos para espantos.
Um dia, um explicava por que o vovô morava no céu e não com a vovó. No outro, um ensinava pros outros amigos como é que se "plantava irmãozinho". E agora, como não ter medo de tomar vacina.
- E como é que você aprendeu isso?
- Minha mãe é que me ensinou.
- E como é que ela te ensinou? Ensina pra gente, que eu também tenho medo de injeção.
João olhou desconfiado para a tia Ana: como é que um adulto ia ter medo dum negócio tão pequetito que nem agulha?
- Ué, é só pensar que a vacina é para não ficar doente. Ou, se já estiver doente, é remédio para melhorar. Eu não gosto de ficar doente - você gosta, Tia?
- Não, mas, nem por isso gosto de injeção.
- Mas, não é pra gostar! É só pra não ter medo. É que nem ir no médico.
- Como assim? - quis saber a tia.
- Você gosta de ir?
- Não.
- Então, por que vai? - perguntou Pedro, curioso com o fato de que gente grande também tinha que ir ao médico - já tinha até decidido: quando fosse grande, não iria nunca!
- O médico diz pra gente o que é que a gente tem, se tá doente ou não. Se tiver, ele passa um remédio e a gente fica bom - resumiu a tia, que estava se divertindo com a curiosidade dos pequenos.
- É, Tia, mas se não tomar o remédio que o médico passa, de que adianta? É melhor nem ficar doente, né? - ajuntou Mariana, que estava interessadíssima no assunto: vivia cuspindo o remédio de alergia, infernizando a vida da empregada que acabava desistindo e deixando para D. Paula a ingrata tarefa de dar o xarope no final do dia, debaixo de ameaças.
- Eu vou no médico quando a minha mãe marca e nem ligo se tem que tomar vacina. Já fiquei doente e tive que colocar "mosquinha" e também não chorei - por isso prefiro ficar bom pra poder brincar: é chato ficar na cama sem poder levantar - "de repouso" - completou João, satisfeito.
- Que história de mosquinha é essa, João? - quis saber a tia, que não entendia o que uma mosca tinha a ver com o papo.
- Sabe quando a gente fica vomitando o tempo todo que não pára nem mais água? E quando tem que ir no hospital?
- Ei, eu já fiquei assim! - o coro dos "Eu também!" cresceu.
- Pois é. Então, quando eu tive que tomar "água" pelo braço, que pela boca ficava saindo, minha mãe conversou comigo que iam precisar colocar um canudinho no meu braço, porque o meu corpo precisava de água, mas a minha barriga tava brigando com ela, me fazendo vomitar. Só que, pra beber água por esse canudinho, iam colocar uma mosquinha no meu braço, pra eu poder beber água e não vomitar mais, já que não tava segurando nem o remédio que ia fazer parar essa "vomitação".
Minha mãe também me falou que ter medo era bom mas, só não podia ficar nervoso, que o corpo ficava duro e aí ficava difícil achar o lugar da mosquinha e que podia doer mais. Também disse que se eu quisesse chorar que não ia ter problema.
- Ah, qualé, João, assim também é demais! Só quem chora é "florzinha"- rebateu Renato, colocando em palavras as broncas que levava do avô quando caía e se machucava.
- Né nada! - e lá se foi a discussão de novo.
Como a hora do pátio estava acabando, a tia Ana pediu que fossem para as suas salas e que acabassem a discussão mais tarde.
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