quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Mais de mim - Tales from Koma

UTI - 1o. dia

- Ela está bem, embora em coma.
- Quebrou alguma coisa?
- Não. Não sofreu um arranhão.
- Não?! Depois daquela trombada?
- Pois é. Não tivesse virado a cabeça teria recebido a pancada nos olhos e aí...
- A estória seria outra. Afinal o que houve?
- Não se sabe muito bem. Pelas roupas que estava usando e pela bicicleta, além de estar suada, é mais do que provável que tivesse acabado de fazer sua "pedalada" matinal.
- O que consta na ficha técnica da polícia?
- Ela "saltou" da bicicleta para empurrar um carrinho de criança que desceu da calçada e parou na rua. Vinha um caminhão cheio de tábuas, uma soltou e bateu nela. O mais interessante é que ela virou no último instante, como se algo a chamasse. A tábua bateu na nuca e ela foi projetada contra os carros estacionados.
- E o bebê?
- Estava no colo da mãe. Quando o carrinho foi parar na rua, ela deu um grito, chamando a atenção da ciclista. Foi a conta. Um ato louvável, embora inútil.
- Eu fico me perguntando... Terá sido mesmo? E o que ela teria ouvido?
- Acho que jamais saberemos, mesmo que ela saia do coma.
- Algum parente veio vê-la?
- Os pais moram em outro estado, como toda a família, por sinal. O namorado está fora do país.
- A única pessoa que veio foi uma velhota, a dona do apartamento onde ela mora. Trouxe um mp3 e duas caixas de som. Mandou que houvesse sempre música no ar, além de ter gasto quase meio vidro de perfume, acho que era francês. Fez isso e deu no pira. Fiquei sem entender.
- Estímulos externos que são capazes de atingir uma parte dela que está "desligada". Velhota inteligente.
- Será que dá resultado?
- Não custa tentar. Falando nisso, cadê o mp3 e as caixas?
- A enfermeira-chefe mandou colocar na sala das enfermeiras. Disse que não ia fazer falta.
- Vá lá, pegue as caixas e o aparelho. Agora, enfermeiro!

A primeira música que tocou, na escolha aleatória do médico, foi o "Bolero", de Ravel. Surpreso, ele olhou a paciente inerte, como que para verificar se ela seria do tipo erudito.

- Ela tem jeito de punk, Doc.
- Por quê?
- Olha o número de furoas de brinco, as tatuagens esquisitas e esse ar pálido.
- Minha irmã também tem vários furos e tatuagens. E ela é advogada. Ela está pálida por o cérebro exigir mais sangue, com mais oxigênio. Até que ela é simpática.
- O Doc gamou na dorminhoca!
- Olha o respeito, plantonista!
- Tá bem, Doc, OK.
- A propósito, qual é o nome dela?
- Sister Moon.
- Sister? Quer dizer que ela é freira?
- Não, Doc. Quero dizer que é a tal escritora, aquela maníaca-depressiva.
- Chega. Qual é o nome dela?
- Não sei, Doc. A senhoria disse que ela gostaria de ficar anônima.
- Mas isso é irregular.
- Tudo isso é irregular, Doc.
- Bem. Algo mais que eu deva saber?
- Não. Ou melhor, tem uma coisa...
- O que é? Desembucha.
- Às vezes ela parece estar rindo, outras, furiosa. Isso sem mover um músculo que seja.
- Há quanto tempo ela está em coma?
- 18 horas.
- Alguma mudança ou algo de anormal?
- Sim. Às 13 horas ela teve febre alta. A enfermeira de plantão afirma que ela abriu os olhos, olhou e, dizendo um nome esquisito, fechou os olhos com força. A febre passou logo depois.
- Você disse, um nome esquisito?
- É. Eu até anotei na ficha, taí do lado.
- Angkor?! Isso não é nome, pelo menos não de gente.
- O que é?
- É o nome de uma cidade, capital de um império antigo, recém-descoberto. Angkor-Vat era a capital do Império do Khmer Vermelho, no Vietnã do Sul.
- E o que essa maluca terá querido dizer?
- Eu é que sei? Tenho que continuar a ronda. Deixe o o mp3 tocando e coloque um pouco de perfume nas roupas e perto do nariz, sem sufocá-la. Qualquer coisa me chame. Até mais tarde.


CARAVANSARY

Sons... na minha cabeça, ao meu redor... Sinto-me como se eu fizesse parte da melodia, com suas sutis variações, aaltos e baixos. Ao mesmo tempo em que sou musica viajo com o vento do deserto, estando em todos os lugares ao mesmo tempo.

A caravana passa e eu a envolvo com os meus sons, em mil tons... é um algo qualquer de céu estrelado, numa noite de lua. Uma qualquer coisa que segue o mapa celeste, guiando-se por todas as estrelas e perdendo-se na imensidão do deserto.

Viajo, em meus sonhos, para o meu mundo real. Sonho que abro os olhos e vejo um homem de branco. Ele me olha surpreso e pergunta:

- Você está bem?
- Estou sonhando... você é parte do meu sonho. Quem é você?
- Me chamam de Doc, sou o médico de plantão. De que sonho você está falando?

Achei graça e resolvo continuar "lúcida".

- Estou em coma e agora vivo no meu mundo interior. O deserto à noite tem uma magia toda especial, que aumenta com a lua cheia. Agora estou dormindo e sonhando que voltei ao meu mundo... mas é apenas um sonho.
- Espere! Não é sonho. Não durma! Não!

Faço-me de surda e volto a dormir. Acordo com Angkor me cutucando.

- Naraya! Vamos partir hoje, em direção ao sul. Levante-se.
- Tive um sonho esquisito...

Quando acabei de contar ele deu um sorriso triste e comentou, antes de sair da tenda:

- Não foi sonho... você saiu do coma e voltou a ele.

Passei o dia andando de um lado para o outro, supervisionando as coisas, ao mesmo tempo em que as palavras de Angkor martelavam, como se nelas estivesse a resposta do enigma. Só pude falar com ele à noite, enquanto guiávamos a caravana.

- Suas palavras têm algum significado oculto, que me escapa.
- O sonho é a chave que abre a porta para o teu mundo... troque a ordem das coisas, o sonho é o teu mundo, e isto... isto é ilusão, sonho.

Meditei a respeito, durante parte da jornada. A sensação de encarar um sonho como a minha realidade era por demais esquisita. Ponderei que, por outro lado, viver a ilusão da caravana estava sendo um algo realizador. Admiti que seria uma escolha difícil...

- Não posso pedir que fiques aqui. Tu és um ser real e nós, nós somos os fantasmas que habitam a tua mente.
- Como é...
- Seus pensamentos são eloqüentes, sua dúvida, quase palpável. Tudo o que posso te pedir é que não decidas agora, viajando conosco por mais algumas luas.
- Onde estamos indo, além de ser em direção ao sul?
- Há um oásis e uma cidade. Ficaremos no oásis e mandarei alguns ao mercado.
- Nós nos conhecemos numa cidade, qual era o nome dela?
- "Osnamor", é como a chamam; significa "Algo invisível sob o sol". O Rei a chama de "Kheme", onde tudo é transformado.
- "Kheme"... E para onde vamos?
- Para "Al"... não tem nenhum significado, embora seja a mais próxima dos limites do deserto.
- E além dele, o que há?

Olhando-me, dourando-me nos seus olhos, murmurou:
- O fim do mundo. Ou melhor, o fim dos sonhos